O texto foi publicado nesta quinta-feira, 21, no blog do jornalista Flávio Gomes.
O garoto Kevin tinha 14 anos, gostava de futebol, torcia para o San José, foi ao jogo e voltou num caixão.
De todo o amontoado de bobagens que escreverei a seguir, nada é mais pesado do que isso e nada tem a menor importância diante da dor que a família do menino está sentindo.
Nada do que foi dito ou será vai mudar essa situação. Ele morreu, não existe mais.
Ouço e leio aqui e ali a palavra “fatalidade”. Não foi, óbvio. Tudo que pode ser previsto ou evitado não entra na categoria de “fatalidades”. Se um meteorito despencasse dos céus de Oruro e atingisse Kevin na cabeça, aí sim seria uma fatalidade. Se um escorpião venenoso se esgueirasse por dentro do tênis de Kevin debaixo da cama e o picasse mortalmente, seria uma fatalidade. Se Kevin estivesse comendo um chicharrón de cerdo e engasgasse com um grão de milho, perdesse a respiração e morresse na mesa de um restaurante, seria uma fatalidade.
Um morteiro disparado de dentro de um estádio de futebol não é uma fatalidade. É uma estupidez.
Eu divirjo da maioria, senão da totalidade, de meus colegas que recusam a tese da generalização para tentar conter a repetição dessas tragédias. “Não se pode generalizar” é a primeira coisa que ouço quando acontece qualquer coisa que envolva uma torcida de um time de futebol, seja ele qual for. Discordo. Acho que é absolutamente necessário generalizar quando o coletivo é bem maior e mais difícil de controlar do que o individual.
Desta forma, a culpa é, sim, da torcida do Corinthians. E é ela que tem de ser controlada, necessidade maior, a esta altura, do que identificar o infeliz que disparou o rojão que matou Kevin. E é punindo o coletivo, o Corinthians, que, quem sabe, assassinatos semelhantes possam ser evitados no futuro.
Calma, não é necessário ter nenhum ataque histérico diante da frase que abre o parágrafo acima. O que proponho para reflexão a seguir é quase um raciocínio estatístico, e lamento se alguém achar que estou partindo para uma discussão clubística.
Para desfazer tal impressão, vou usar como contra-exemplo (coloquei e tirei o hífen disso aí dez vezes; ficou melhor com) meu time e minha torcida, a Portuguesa. Partamos de dois números arredondados, mas não necessariamente chutados, uma vez que se baseiam em pesquisas recentes. Arredondados para facilitar a compreensão.
O Corinthians tem 20 milhões de torcedores no Brasil. A Portuguesa, 200 mil. A proporção, pois, é facílima de calcular. O Corinthians tem 100 vezes mais torcedores que a Portuguesa.
Numa amostragem de 20 milhões, como numa amostragem de 200 mil, vai-se encontrar de tudo, rigorosamente todo tipo de gente. Assim, é possível afirmar, sem medo algum de errar, que entre corintianos há, em relação aos torcedores da Portuguesa, 100 vezes mais brancos, negros, nisseis, gays, aleijados, advogados, engenheiros, padeiros (sim, padeiros também), médicos, faxineiros, prêmios Nobel, padres, evangélicos, filantropos, pilotos de avião, asmáticos, mergulhadores, dançarinos, tocadores de tuba, ricos, pobres, porteiros de prédio, executivos de multinacionais, bancários, mulheres bonitas, mulheres feias, gordos, magros, cadeirantes, bigodudos, depiladas, juízes, promotores, desembargadores, delegados, policiais, jornalistas, tatuados, alcoólatras, bandidos, mocinhos, condenados, inocentados, pacifistas, gente violenta, lúcidos e idiotas.
Portanto, quando se quiser fazer qualquer comparação, qualquer uma, de categorias humanas, sejam elas divididas em classes social, profissional, econômica, sexual ou racial, a torcida do Corinthians será sempre, em qualquer circunstância, 100 vezes mais do que a da Portuguesa. Se há um tocador de tuba no Canindé, haverá 100 no Pacaembu. Se há uma morena linda no Canindé, haverá 100 no Pacaembu. Para cada taça exposta na sala de troféus do Canindé, há 100 no Parque São Jorge.
A conclusão é que sim, é possível dizer que a torcida do Corinthians é 100 vezes mais violenta que a da Portuguesa. E 100 vezes mais pacífica, também. Só que quando se fala de multidões, e 20 milhões representam uma multidão assim como 200 mil, individualizar a discussão perde o sentido e resulta em medidas inócuas. Trata-se de coletivos. Uns maiores — corintianos, flamenguistas, são-paulinos, vascaínos, palmeirenses, gremistas — e outros menores — juventinos, xavantes, lusos, americanos. E os indivíduos que fazem parte dessas coletividades dificilmente serão atingidos individualmente por punições se o coletivo não o for.
No Brasil, sei lá se no resto do mundo é assim, o medo de generalizar só emerge quando se trata de algo negativo. Às dezenas de ocorrências envolvendo a torcida do Corinthians, todos se apressam em clamar que “não é a torcida toda”. É óbvio. Tão óbvio, que desnecessário dizer. Mas, por outro lado, generaliza-se para o bem, porque é de bom tom afagar a massa. Quando se encontra um corintiano humilde que vendeu a geladeira, o fogão e a bicicleta para ver o time no Japão, todos se apressam em clamar que “a torcida do Corinthians é diferente, apaixonada, não mede esforços etc”. Aí a generalização é aceita. Mesmo sabendo-se que entre os 50 mil que foram ao Japão, havia também escroques, estelionatários, traficantes e proxenetas. Mas ninguém afirma, ao encontrar um desses, que “a torcida do Corinthians é diferente, um bando de procurados pela Justiça e ex-presidiários, não liga a mínima se está viajando com dinheiro fruto de ilegalidades”.
Tem de tudo, do humilde apaixonado ao bandidão que roubou dinheiro da merenda escolar, e assim não é possível determinar com precisão qual é o perfil majoritário que integra essa coletividade. Não é justo dizer que corintiano é tudo bandido, como é impreciso afirmar que é tudo apaixonado com auréola de santo. Mas é seguro afirmar que a torcida corintiana é violenta, porque o ser humano é, a sociedade é, e quando mais indivíduos qualquer grupo agrega, mais “tudo” ele é. Violento, inclusive. Donde é possível afirmar que a torcida do Corinthians é 100 vezes mais violenta que a da Portuguesa, pela única e simples razão de que ela é maior. 100 vezes maior.
O caso do futebol é bastante específico e há farta literatura disponível sobre o conjunto de medidas possíveis para reduzir a violência, inibindo os indivíduos de praticá-la a partir de punições coletivas, uma vez que é virtualmente impossível identificar e punir indivíduos que fazem parte de grandes massas humanas. O caso mais clássico é o da tragédia de Heysel, na Bélgica, em 1985, na final da Copa dos Campeões entre Liverpool e Juventus. Os hooligans ingleses já estavam fora controle havia muito tempo, espalhando o terror pela Europa, e nada era feito, até a briga generalizada que matou 38 pessoas no estádio de Bruxelas.
Entre as medidas punitivas impostas pela UEFA esteve a suspensão de TODOS os times ingleses de competições continentais por cinco anos. Não sei quantos hooligans foram presos e condenados. O que foi possível pegar, creio que pegaram. Mas o espírito da punição foi esse, coletivo. Não se atacou apenas uma torcida organizada, que poderia ser proibida de entrar nos estádios, ou um grupo específico de beberrões que se reuniam num determinado pub da cidade para sair barbarizando por aí. Nem mesmo o Liverpool, que poderia ter sido suspenso individualmente — digamos que, nesse caso, o Liverpool poderia ser comparado a um indivíduo entre o coletivo de “indivíduos” representados pelo conjunto de outros clubes.
Não. Coletivizou-se a condenação: toda a Inglaterra, por cinco anos. E foda-se.
O resultado, como se sabe, é que nunca mais algo parecido aconteceu em competições europeias, com as exceções de praxe — Sheffield, por superlotação, pancadarias isoladas na Grécia e na Turquia etc; os ingleses saíram do noticiário policial, ao menos com a frequência que lhes era dedicada. Não resolveu o problema integralmente, porque estamos falando da espécie mais mal-sucedida do planeta, o Homo sapiens, mas ao menos reduziu-se a violência ao ponto de ela poder ser controlada, o que já é alguma coisa.
O que aconteceu ontem na Bolívia poderia não ter acontecido se, por exemplo, o Corinthians (ou TODOS os times brasileiros) tivesse sido suspenso de todas as competições sul-americanas por cinco anos depois que sua torcida (OK, não foi toda, não precisam repetir o tempo todo) tentou invadir o campo no Pacaembu para bater em seus jogadores e nos do River Plate, em 2006. Sabe-se lá como aquela turba enfurecida foi detida por meia-dúzia de policiais que seguraram a massa literalmente no peito. Uma enorme tragédia poderia ter ocorrido. O Corinthians ficaria cinco anos sem Libertadores. Seus torcedores pensariam duas vezes antes de fazer algo parecido. O infeliz que disparou o morteiro e matou Kevin ontem, consciente de que seu clube, sua grande paixão, sua vida e seu amor poderia ser suspenso de novo, talvez enfiasse o rojão no próprio rabo, em vez de disparar contra outras pessoas.
E isso vale, obviamente, para qualquer indivíduo e para qualquer torcida. Se um manuel ou joaquim qualquer fizer isso no Canindé um dia, defenderei o mesmo rigor — como fiz, na TV, quando um paspalho invadiu o vestiário da Portuguesa com seguranças armados outro dia, fazendo com que jogadores e técnico se sentissem ameaçados; falei na TV que o correto seria rebaixar a Portuguesa para sei lá qual divisão, assim como deveriam ter rebaixado o Coritiba para o Desafio ao Galo quando seus torcedores promoveram cenas de horror no Couto Pereira no rebaixamento de 2009.
O que é preciso entender é que para controlar enormes coletividades, só com grandes punições e ameaças de. Não vai acontecer rigorosamente nada de realmente sério nesse caso de Oruro. Uma multa para o Corinthians, talvez, ou a prisão do responsável se ele for identificado. Mas a Conmebol não é uma entidade que tenha estatura moral para fazer nada, ela que há décadas é conivente com espetáculos de selvageria nos estádios de todos os países da América do Sul (Brasil, inclusive).
Kevin poderia estar vivo se não fosse a estupidez coletiva que passa pelas autoridades bolivianas, que não revistam os torcedores, pelos idiotas que vendem sinalizadores, morteiros e rojões que nada mais são do que armas de fogo, pelas autoridades que não proíbem explicitamente a entrada de tais artefatos nos estádios, pelos clubes que sustentam torcedores pau-pra-toda-obra, pelos acéfalos que acendem um rojão e miram nos caras que torcem para outro time, pelos amigos dos acéfalos que sabem que eles, mais cedo ou mais tarde, farão algo parecido.
Se prenderem o rapaz, ou a moça, que disparou o morteiro, azar dele, ou dela. Não creio que isso vá inibir outros corintianos, ou torcedores do Peñarol, ou do Boca, ou da Portuguesa, ou do Grêmio Barueri. “O cara se fodeu”, dirão. E continuarão fazendo suas merdas em maior ou menor quantidade dependendo do tamanho do grupo ao qual pertençam.
Punam o clube, ou o país, e a coisa começa a estancar.
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